Criação de comitê de especialistas, reserva de vagas e apoio de médio prazo estão entre aprendizados da construção de edital para organizações negras e indígenas
As relações étnico-raciais são um tema fundador da sociedade brasileira, inclusive no que diz respeito à educação. Organizações negras e indígenas têm centralidade em propor práticas e políticas públicas para promover a equidade no ensino. No entanto, elas recebem apenas uma pequena fração do capital filantrópico no Brasil. Em 2024, nos juntamos ao Instituto Unibanco no lançamento do Edital de Fortalecimento Institucional - Equidade Étnico-Racial para contemplar 20 organizações negras, indígenas ou quilombolas da sociedade civil com apoio financeiro, suporte para desenvolvimento institucional, mentoria e compartilhamento de práticas e conhecimentos. O objetivo é fortalecer sua atuação e impacto nos territórios onde elas estão inseridas.
A preparação do edital envolveu muita reflexão e diálogo sobre princípios e práticas da Imaginable Futures, do Instituto Unibanco e do setor filantrópico no Brasil de maneira mais ampla. Buscamos identificar lacunas e oportunidades, atentos a como podemos, como financiadores, ampliar nosso papel na construção de uma sociedade mais equitativa num país em que o sistema de educação oferece oportunidades para poucos privilegiados. De acordo com o Observatório da Branquitude, escolas de educação básica com melhor infraestrutura reúnem em sua maioria alunos brancos, 69% do total. Já mais da metade das escolas de maioria negra não possui biblioteca (50,2%), laboratório de informática (53,1%) e quadra de esportes (51,7%). Como fruto desse contexto, os indígenas são o grupo populacional com o maior índice de analfabetismo, e a taxa de analfabetismo entre pessoas negras é mais que o dobro da registrada entre brancos.
"A decisão mais importante na construção do edital foi a definição de critérios de participação que priorizam organizações lideradas por pessoas negras, indígenas ou quilombolas, além da reserva de vagas para essas organizações. Essa medida é fundamental porque garante que as lideranças desses grupos, que frequentemente enfrentam barreiras significativas de acesso a recursos, possam participar e beneficiar-se diretamente. Com este foco, o edital inspira outras organizações a adotarem uma abordagem mais inclusiva e representativa.", avalia Thaís Dias Luz, analista sênior de Estratégias Educacionais do Instituto Unibanco.
A Imaginable Futures e o Instituto Unibanco não construíram o edital sozinhos. Uma comissão representativa formada por mulheres negras, indígenas e quilombolas especialistas em educação étnico-racial participou de decisões relacionadas ao critério de escolha das organizações apoiadas e dará suporte pedagógico para o grupo de organizações depois da seleção. São parte desse comitê Edneia Gonçalves, socióloga, educadora e coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa; Givânia Maria da Silva, professora, pesquisadora e coordenadora do Coletivo Nacional de Educação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – CONAQ; Jussara Santos, doutora em educação, professora e consultora no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT); e Rita Potyguara, indígena do Povo Potyguara e diretora da sede Brasil da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
"O edital está sendo realizado a partir de uma construção coletiva, onde pesquisadoras negras, indígenas e quilombolas foram ouvidas e participaram da tomada de decisões do desenho e do escopo do edital", explica Jussara Santos.
Ser liderada por pessoas negras, indígenas ou quilombolas foi um pré-requisito para participação das instituições. Decidimos também reservar metade das vagas ofertadas para organizações indígenas e quilombolas, sendo 25% para cada, garantindo o fomento aos saberes tradicionais. A decisão parte da constatação de que há um subfinanciamento histórico dessas organizações a despeito de o seu acúmulo de experiências resultar em soluções e abordagens efetivas. Acreditamos também que a diversidade de conhecimentos é crucial para a promoção da equidade racial.
"Tal decisão [de reservar vagas] foi tomada considerando suas realidades sócio-históricas, econômicas e culturais, sendo grupos em que os indicadores de desigualdades são mais expressivos. Os indígenas, por exemplo, apresentam a maior taxa de analfabetismo da população brasileira, o que evidencia os efeitos perversos da interseccionalidade que há entre as raças, etnias, pobreza e analfabetismo, que caracteriza as desigualdades em nosso país", contextualiza Rita Potyguara.
Optamos por fornecer apoio para organizações com um orçamento com receita anual de até R$ 1 milhão. O setor filantrópico costuma concentrar o financiamento em organizações maiores e com redes pré-estabelecidas em detrimento de organizações locais e de base, que são espaços de concentração de sabedoria. Acreditamos que quando a educação é contextualizada no território e conta com a participação ativa da comunidade, a qualidade na aprendizagem é fortalecida.
Nesse mesmo sentido, abrimos a possibilidade de participação no processo para organizações não formalizadas com CNPJ, desde que dispostas a participar de um processo de formalização depois da sua seleção. O apoio técnico para tal processo será oferecido gratuitamente para as selecionadas. Esperamos, dessa forma, contribuir para a necessária e possível construção de políticas públicas debaixo para cima.
"A possibilidade de participação de coletivos e organizações que no ato da inscrição ainda não possuem CNPJ significa a inclusão de um grupo grande de organizações que sempre foram excluídas por não ter essa formalização. Existir a possibilidade de formalização das escolhidas depois da seleção é uma possibilidade de real fortalecimento institucional para que essas organizações não só continuem existindo, mas continuem participando de outros editais, acessando outras formas de apoio", prevê Edneia Gonçalves.
Com frequência, financiamentos oferecidos para organizações de sociedade civil são focados em projetos específicos por um período limitado de tempo. Guiados por princípios da filantropia baseada na confiança, optamos por permitir que as organizações possam aplicar os recursos da maneira que considerarem melhor para desenvolverem sua estrutura interna por meio ações de diferentes naturezas, como gestão de pessoas, comunicação e sustentabilidade financeira. Além disso, o apoio financeiro, de R$ 100 mil por ano, será mantido durante três anos, no período de 2025 a 2027. Além dos recursos financeiros, as entidades escolhidas também terão acesso a mentoria, comunidade de práticas e trilhas de fortalecimento institucional com foco em liderança, gestão, comunicação e sustentabilidade financeira, entre outros temas.
"Cada organização selecionada receberá recurso financeiro, para fortalecimento institucional, podendo aplicar os recursos da melhor forma possível, sem necessariamente serem recursos rubricados para ações de projetos específicos. Esse modelo de apoio abrangente pode inspirar outras fundações a fornecer recursos que ajudem as organizações a crescerem de maneira sustentável e eficaz", explica Thaís Dias Luz.
O edital reconhece o papel fundamental que organizações negras e indígenas têm na construção de uma sociedade mais justa. Estamos selecionando iniciativas locais que exemplificam a mudança que queremos promover no sistema como um todo. Daremos apoio para a formação de comunidades de práticas e também para o monitoramento e avaliação do seu desenvolvimento e alcance de seus objetivos. Assim, soluções que têm contribuído diretamente para territórios poderão ser multiplicadas por meio da troca dos aprendizados. Temos esperança também de que a disseminação dessas experiências atraia novos apoiadores que compartilhem conosco a crença de que a filantropia desempenha um papel único na criação de uma sociedade mais justa.
Guiados por princípios da filantropia baseada na confiança, optamos por permitir que as organizações possam aplicar os recursos da maneira que considerarem melhor para desenvolverem sua estrutura interna por meio ações de diferentes naturezas, como gestão de pessoas, comunicação e sustentabilidade financeira.